Paralelepípedo (*)
Gil
Maulin
Descia
de elevador até o térreo. Toma o rumo da padaria. Pão e café. O
cigarro entre os dedos. O gosto da manhã e jornal. A catedral como
teto da cidade presépio. Os pombos perfilados no parapeito dos
prédios. Os santos em cores e vidro. A rua inundada de gente. A
velha cidade amanhecera como sempre. Asfáltica. Rápida. Temporal. A
velha província em várias cenas. Instantâneas rotinas. A padaria e
o pão. O sonambulismo daquele homem que sempre se repetia. Olhava
para o mesmo espelho do envelhecido apartamento. Mergulhava pra
dentro do chuveiro. O porteiro sonolento. O café da esquina diante
de uma manhã sem improviso. O ritmo do voo dos pombos o fascinava.
“Os pombos são ratos alados”, afirmava. Sentava no banco da
praça. Observava o jogo de dominó e dama com certa antipatia que
beirava o preconceito. Não admitia um bando de velhos cruzando
pequenas peças de plástico, se fazendo gargalhadas e zombarias.
Mascava a língua enquanto pensava. Mas logo se levantava daquele
retrato conhecido. Continuava. Ruas. Meio-fios. Letreiros. Semáforos.
“Tudo são sinais”, dizia. O relógio de mesa. A sopeira intocada
da bisavó. Os retratos colados na parede. Os pelos antigos dos
cachorros já mortos. Sua mente é uma roda viva cheia de sombras.
Por isso, caminha. Reduz o peso de tanta gente que ali lhe habita.
Perambula pelos cafés e praças daquela cidade sem nome, numa
vizinhança conhecida. Ali, rotinizava sua vida. Bebia do aguardente.
Só pra descarrego. Logo mais haveria de subir até o andar de seu
apartamento. Tomar do banho. Deitar do almoço. Falar novas rezas.
Por via das dúvidas rezava, pois de repente poderia haver alguém
que ali o escutasse. Fazia prece de leigo. Amenizava seu ateísmo.
Amanhecia. Antiga praça. Antigo dominó. Antigo tudo. Encontrava os
pretéritos dias. Assombrados. Aos poucos desaprendeu a assoviar.
Desaprendeu a ver passarinhos. Agora, só os ratos-pombos. Na sala se
projetavam velhos diálogos. Insultos. Acarinhamentos. Antigos
natais. Aniversários. Finais de ano. A sala lhe falava. Na verdade,
um monólogo. A mesa. O baú de ossos. As taças de cristais. O
legítimo champagne
nunca aberto. Ecoavam os tios, irmãos, sobrinhos e primos. Ele, o
anfitrião, quem abrira a porta. Quem sorria. Comia o pão do dia.
Todos ali pra lembrar o que havia. Era um contar de tempo. E num
rompante primaveril, decidiu vender o apartamento. Decidiu não mais
entender os pombos. Encerrou a conta da padaria. Sentou na praça.
Bebeu da champagne
safra 1962 entre gargalhadas e dominó.
(*) Crônica publicada no Caderno Pensar, de A Gazeta, dia 15.10.2011.
Um comentário:
Preciso te falar: surpreendente!
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