segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Paralelepípedo


Paralelepípedo (*)

Gil Maulin

Descia de elevador até o térreo. Toma o rumo da padaria. Pão e café. O cigarro entre os dedos. O gosto da manhã e jornal. A catedral como teto da cidade presépio. Os pombos perfilados no parapeito dos prédios. Os santos em cores e vidro. A rua inundada de gente. A velha cidade amanhecera como sempre. Asfáltica. Rápida. Temporal. A velha província em várias cenas. Instantâneas rotinas. A padaria e o pão. O sonambulismo daquele homem que sempre se repetia. Olhava para o mesmo espelho do envelhecido apartamento. Mergulhava pra dentro do chuveiro. O porteiro sonolento. O café da esquina diante de uma manhã sem improviso. O ritmo do voo dos pombos o fascinava. “Os pombos são ratos alados”, afirmava. Sentava no banco da praça. Observava o jogo de dominó e dama com certa antipatia que beirava o preconceito. Não admitia um bando de velhos cruzando pequenas peças de plástico, se fazendo gargalhadas e zombarias. Mascava a língua enquanto pensava. Mas logo se levantava daquele retrato conhecido. Continuava. Ruas. Meio-fios. Letreiros. Semáforos. “Tudo são sinais”, dizia. O relógio de mesa. A sopeira intocada da bisavó. Os retratos colados na parede. Os pelos antigos dos cachorros já mortos. Sua mente é uma roda viva cheia de sombras. Por isso, caminha. Reduz o peso de tanta gente que ali lhe habita. Perambula pelos cafés e praças daquela cidade sem nome, numa vizinhança conhecida. Ali, rotinizava sua vida. Bebia do aguardente. Só pra descarrego. Logo mais haveria de subir até o andar de seu apartamento. Tomar do banho. Deitar do almoço. Falar novas rezas. Por via das dúvidas rezava, pois de repente poderia haver alguém que ali o escutasse. Fazia prece de leigo. Amenizava seu ateísmo. Amanhecia. Antiga praça. Antigo dominó. Antigo tudo. Encontrava os pretéritos dias. Assombrados. Aos poucos desaprendeu a assoviar. Desaprendeu a ver passarinhos. Agora, só os ratos-pombos. Na sala se projetavam velhos diálogos. Insultos. Acarinhamentos. Antigos natais. Aniversários. Finais de ano. A sala lhe falava. Na verdade, um monólogo. A mesa. O baú de ossos. As taças de cristais. O legítimo champagne nunca aberto. Ecoavam os tios, irmãos, sobrinhos e primos. Ele, o anfitrião, quem abrira a porta. Quem sorria. Comia o pão do dia. Todos ali pra lembrar o que havia. Era um contar de tempo. E num rompante primaveril, decidiu vender o apartamento. Decidiu não mais entender os pombos. Encerrou a conta da padaria. Sentou na praça. Bebeu da champagne safra 1962 entre gargalhadas e dominó.

(*) Crônica publicada no Caderno Pensar, de A Gazeta, dia 15.10.2011.

Um comentário:

Carmen disse...

Preciso te falar: surpreendente!